Por Celeste
Osairanle
“... Como pode eles se considerar uma religião de culto a natureza quando tiram a vida dos bichinhos?...” (Informatvo Alafiona - Dez/2009 pag 08)
Caminhando pelas ruas de Salvador, ouvi um comentário rápido, mas contundente de um jovem que questionava dizendo: “... como pode eles se considerar uma religião de culto a natureza quando tiram a vida dos bichinhos? Como uma prática dessas pode ser preservação da natureza?” Até eu me questionei a respeito dessa indagação e partir para busca de argumentos a partir da compreensão fidedigna dos dogmas de minha religião. Não a toa que eu escutei esse comentário. O que trago para meus irmãos de Àsé (Axé) neste texto é justamente o que considero a concretização desta compreensão. Poderíamos discutir muitas teses a respeito deste dogma que é o mais polêmico deles. Teríamos páginas e mais paginas para justificar. Mas apresentarei aqui um resumo prático.
No culto às divindades, desde os primórdios, eram comuns as oferendas matérias com vários propósitos: Agradar aos deuses para que a colheita fosse farta; para que as intempéries não abatessem as civilizações; para purificar o alimento que será consumido a fim de torná-los mais fortes; para que o mar fosse generoso na hora da pescaria, etc.
A prática da oferenda de animais não é uma especialidade do Candomblé, outras religiões, a exemplo do Islamismo e Judaísmo, também oferecem animais em seus rituais, cada um de forma peculiar.
Matar é crime? Depende do que se mata?
“Todos os seres vivos nascem, crescem, reproduzem e morrem” ou são assassinados!
Algumas vertentes religiosas e sociais consideram primitivo o ato de “matar animais”, mesmo sendo para comer. Quando o alimento é submetido a algum tipo de ritual para ser comido é interpretado de forma satânica. Se pensarmos no ato de matar ou na condição de morrer, identificamos a morte de várias espécies tão somente para matar nossa fome e para o deleite do paladar. Neste contexto, matamos as flores ao serem colhidas, os legumes, os cereais, as nascentes de rios exploradas até o limite de seu potencial, etc. O fato de a oferenda ser um animal, classe a qual pertencemos, é o que torna questionável o ato de matar. A semelhança da cor e consistência do sangue dos animais causa uma sensação de estarmos cometendo um ato de violência, diferente do que podemos perceber, quando colhemos carinhosamente a flor para enfeitar a casa, a igreja e o cemitério. Certamente teríamos igual sentimento de estarmos cometendo um “assassinato”, se ao colhermos a flor, desta jorrasse sangue vermelho. Surgiriam grupos sociais de proteção e preservação das flores e das verduras pois estas nascem, crescem, reproduzem e morrem.
Observando a cadeia alimentar nos encontramos sentados no topo, comendo tudo que achamos possível ser comido para sobrevivermos, comendo até a nossa própria espécie. Parece macabro, não? Mas existem registros de fatos dessa natureza. Se a ciência afirma que podemos viver tranquilamente com saúde, sem a necessidade de comer bichos, realmente precisamos de um forte incentivo para deixaremos essa prática perversa. Teremos também que nos preparar psicologicamente para a convivência, passiva, mas intensa com nossas antigas presas, a julgar pela quantidade de bichinhos com os quais teremos que dividir espaço, e claro, comida também.
É certo que não podemos sair por ai matando os animais de forma desordenada, espécies raras e em extinção, como algumas casas de Candomblé, mal orientadas, vêm fazendo. Existe todo um contexto dogmático-espirito-religioso para se proceder as oferendas de animais no culto.
Que tal então um Candomblé Vegetariano?
Afirmando estar contribuindo para a “evolução” da religião, já existe terreiro de Candomblé vegetariano por ai. Gente que considera ter feito um trabalho de purificação e evolução das divindades oferecendo flores, e frutas porque a Mãe de Santo dessa casa é então vegetariana. Analisando essa proposta evolucionista para o culto do Candomblé, encontramos vários elementos a discutir: Qual a verdadeira identidade dessa religião? Qual a origem dessa crença em que se oferecem animais a divindades? O que é real e o que é interpretação equivocada? Se for possível modificar os dogmas, será também possível descaracterizar e transformar toda a origem das várias religiões existentes em nosso mundo. Deixando de lado as bases históricas e partindo-se para a transformação evolutiva de todas as formas de fé. Poderíamos então transformar culturas milenares de nossa história a fim de torná-las superiores, eliminando os pés descalços dos Orisa (Orixá) nos barracões, as vasilhas de barro utilizadas no culto de Omolu e Nàná (Nanã), onde estes certamente deixariam de ser cultuados uma vez que são seres, ultrapassados, primitivos que não evoluíram, por isso ainda são criaturas do barro. Òsòósi (Oxossi), o caçador, terá seu culto extinto, nem quero mencionar a tradicional Feijoada do Orisa Ògún (Ogum).
(depoimento da Iyalorisa vegetariana disponível em: http://www.anda.jor.br/?p=2812 )
Devido às más interpretações pouco se sabe hoje do que é realmente sagrado no Candomblé, o que passou a ser apenas a repetição do que se tem posto sobre as religiões de matriz Africana e o que é original. Não se pode negar que toda atividade humana está em constante transformação uma vez que somos seres pensantes e inacabados. Mas, avaliando-se as origens das culturas espalhadas pelo mundo, e a necessidade de manter as tradições, torna-se perigoso a adoção de práticas que negam a continuidade de uma cultura.
Identificamos que está forçosamente acontecendo uma modificação das religiões e culturas em função dos interesses pessoais daqueles que se tornam adeptos desta ou daquela religião. O que nos leva a crer então, que não há um Deus nem um demônio controlando tudo, responsável por nossos atos e induzindo-nos, pois estamos sujeitos apenas ao nosso livre arbítrio. Tudo é invenção humana de Deus ao Demônio, e a partir disso, tudo está em constante evolução junto conosco, seres inacabados. Todas as crenças estão sujeitas a nossa vontade. Orixá não precisará de oferendas de animais, porque evoluímos, e eles, como nossos subalternos e invenção nossa, beberam do nosso progresso, abandonando o sacrifício de animais para sempre. Boa proposta? Precisamos refletir a respeito.
Nota: Em alguns estados brasileiros, o sacrifício de animais nos rituais religiosos já esteve no banco dos réus a exemplo de São Paulo e Rio Grande do Sul, que possuem leis estaduais de proteção aos animais, e que colocam em discussão legal a viabilidade da prática como culto religioso. A coisa é séria!
Qual a semântica Yoruba para que sacrifício de animais seja traduzido como “matança”?
Com a falta de informação oriunda do processo de escravidão que descaracterizou a identidade do Negro, e o total desconhecimento da língua mãe, fez com que os termos utilizados para denominar alguns dos rituais do candomblé, tivessem sentido pejorativo, por racismo mesmo. A tradução das palavras balbuciadas pelos escravos, também não contemplavam de maneira positiva o significado delas em Yoruba, Banto, Jeji etc. O que recebemos como tradução, e o que foi disseminado até os dias de hoje como ritual: “Matança” ou mesmo o nome sacrifício, trazem consigo um sentido que não traduzem o que para as religiões africanas é então a oferenda às divindades, independente de que finalidade a mesma tenha, resumindo-se todas elas em Yorubá, por exemplo, como Oro (Orô). E em outras nações – línguas – também outras nomenclaturas.
Em Segredo
O verdadeiro porque de oferendas de animais no candomblé não é revelado a quem vai tornar público. Eis porque, até hoje, mesmo existindo rejeição dos próprios adeptos da religião, essa prática permaneça. A questão é que muita gente entra para o Candomblé com formação cristã, e passa a pregar como evolução não oferecer animais à divindade.
Aos que recriminam a prática, não é, e nem será revelado os reais motivos. É aconselhável que pessoas sensíveis a este tipo de ritual, não adentrem as religiões que tem o hábito de realizar oferenda de animais as divindades. Para evitar justamente o conflito ideológico. Pensar que é uma contribuição para a sociedade religiosa do Àsé (Axé), tornar vegetarianos os Orixás e com isso servir um cardápio de oferendas “saudáveis” às divindades como forma de evolução, é apenas mais um passo firme para o surgimento de uma nova seita a ser seguida, como tantas que tem por ai, do que há de mais primitivo ao Universo em Desencanto. Tem gosto e fé para tudo.
O que esperamos do nosso povo, os que verdadeiramente seguem o conhecimento que mantém vivo o Ori Àsé (ôri axé) – Imolé das divindades africanas é a compreensão de não revelar os segredos a quem não está preparado para mantê-los. Ainda não sabemos efetivamente de onde viemos, nem para onde iremos o que temos são suposições, nossa origem e destino é segredo, assim como os dogmas do Candomblé. Uma pessoa vegetariana pode ser mãe de qualquer coisa, menos Iyalorisá, certamente a ela não foram revelados os mistérios que a faria mantedora dos conhecimentos ancestrais.
Não devemos matar o que não comeremos, e é lei de sobrevivência matar sempre a nossa fome, seja lá com o que for possível ser comido, desde que tenhamos certeza de que sejam para nos manter vivos. O deleite de escolher entre origem animal e vegetal de nossa alimentação é uma questão de fome, recurso, gosto e fé.