27 maio 2010
Cuidado com a natureza que cultuamos
Por Celeste d´ Alcântara Arruda - Iya Osairanle
Em meio às comemorações que costumamos fazer dentro da mata em Vera Cruz, surgiu um apelo dos Caboclos que traziam um recado interessante de Sango(Xangô): O grande rei pedira para que nós, seus filhos do São Bento, deixássemos de tocar os fogos que anunciam as festas da casa à noite para não espantar os pássaros que habitam as árvores do Terreiro. Devido a caça predatória no que restou da mata ao nosso redor muitas aves migraram para a roça. Atualmente é comum apreciarmos o nascimento de novos pássaros em belíssimos ninhos.
Refletindo a respeito desse pedido do pai Sango, nos perguntamos: Estamos realmente cultuando e preservando as forças da natureza? Analisando cuidadosamente o culto, temos buscado identificar alguns costumes que durante muito tempo configuraram parte dos rituais e que são contraditórios, como soltar fogos em locais com rede elétrica muito próxima ou onde repousam aves. Com a evolução científica e o acesso aos conhecimentos acadêmicos por muitos sacerdotes, foi possível distinguir práticas que não se adéquam ao compromisso de zelo pela natureza afirmado pelo povo de Àsé(Axé).
No Terreiro São Bento, desde sua implantação na Ilha de Itaparica, adotamos costumes que são de fundamental importância para a manutenção e harmonia de um espaço religioso como o nosso; cercado por árvores, variadas espécies de animais e folhas sagradas além de uma nascente de água doce. Sempre fazemos oferendas na mata, e para tanto é preciso recolher objetos não perecíveis, reciclar o lixo, não permitir que seja jogado no solo nenhum tipo de produto que possa contaminá-lo. As garrafas de vidro e demais objetos usados nas oferendas, passado o tempo inerente ao cumprimento dos preceitos, são recolhidos e reciclados. Quando não podemos descartá-los na própria comunidade, como pilhas e baterias, são transportadas a Salvador para o descarte. Ao acendermos velas e soltarmos fogos de artifícios, que são atividades que oferecem perigo, procuramos usar o máximo de atenção buscando sempre local seguro, longe de arbustos, galhos secos e até mesmo dos verdinhos, que no caso deixariam de existir desnecessariamente.
O cuidado com a natureza que cultuamos não se restringe apenas a protegê-la, estendendo-se ao trato com o outro, que para nós, carrega consigo um Orisa que nos traz conforto e segurança. Não permitir água empoçada em vasilhames abertos, manter os banheiros limpos e não compartilhar objetos de uso pessoal nos rituais garante a nossa saúde para que possamos nos dedicar ao culto. Lembrando o Oráculo de Ifa que nos mostra caminhos seguros a seguir, precisamos observar ao nosso redor tudo que fazemos em nome do Orisa no Candomblé, adotando praticas positivas fundamentadas nos conhecimentos ancestrais e orientadas pela lógica e pelo bom senso que são da natureza humana.
Publicado em Alafiona, maio 2010
Aiyebaye – Tempo passado
Por Celeste d´ Alcântara Arruda - Iya Osairanle
À luz de velas e banhos de balde.
Publicado em Alafiona - Nº9
À luz de velas e banhos de balde.
Sempre que acendemos a luz no candomblé saudamos este momento com uma oração, uma canção. Seja essa luz emitida por uma vela, um bibiano, um lampião, um fifó ou mesmo uma lâmpada. Nessa casa do pai Osalá (Oxalá) e de Omolu, não nos foi dada a dádiva de, em pleno século XX, termos reconstruído o Terreiro São Bento com luz elétrica, paredes de tijolos ou água encanada.
Quando adquirimos as terras que hoje habitamos, era tudo mata, tudo barro. Tivemos que erguer casas de taipa e construir com o que a natureza nos fornecia. E a natureza nos deu também a força, a coragem, a resignação e a fé necessárias para erguemos cada casa de Orisa. Foram muitas noites e dias de trabalho árduo. Sangò (Xangô) nos ofereceu uma pedreira, Osún (Oxum), a água pura e doce que move todos os nossos preceitos. Omolu, o barro para nossa casa e o plantio de nossa comida. Ossain e Odé, mesmo com a dor das árvores que tombaram sob nossas mãos, não nos negaram as generosas folhas e frutas nativas que por dias e dias nos alimentaram, nos cobriram e nos curaram. Os pássaros que hoje se abrigam ao nosso redor oferecendo-nos a sua beleza acompanhada de incomparável sinfonia a cada amanhecer, certamente sentiram falta dos abrigos de seus ninhos com a nossa proximidade e as derrubadas, assim como tantos outros animais se assustaram com nossa presença, certamente imaginavam: “... o homem vem aí...”.
Durante anos esperávamos e perseverávamos pela luz elétrica. Quem viveu aqueles dias, lembra da agonia do entardecer que ao chegar trazia um bocadinho de medo do desconhecido escuro da mata. E na fé de que tudo que temos pertence ao Orisá, esperávamos pela canção para acender a luz, que mesmo precariamente nos guiava até a casa de Osalá para então começarmos as rezas, para oferecermos as comidas sagradas, servir, cantar, tocar e dançar para o Orisá. Poucos tinham mesmo coragem de enfrentar a escuridão material e, tateando no barro, caminhar até a roça, com sacolas de roupas, bolo, lembranças, bichos, axés e um coração com fé. De que tudo um dia seria melhor, de que todo sacrifício seria transformado na paz que precisamos para permanecer, a paz de Osalá.
Eu me lembro do ônibus deixando-nos no início da estrada de barro, o motorista dizia: “... a senhora vai entrar ai mesmo dona? é perigoso, está escuro!” Parecia sem fim, o ônibus se distanciava de nós e desaparecia na escuridão. O seco engolido num pedido de coragem para entrar na mata e chegar no São Bento. Santo Lugar! Nunca fomos agredidos, molestados, maltratados ou esquecidos ali, no mato. Esu nunca permitiu, em meio à escuridão, errarmos o caminho. Sempre seguro o caminho que nos leva ao São Bento.
O raiar do dia nos trazia outra canção: a alvorada dos pássaros. Latas e baldes na mão, uma procissão caminhava até a nascente para buscar água. Água para banhar-se, para preparar os banhos de Àsé, cozinhar, encher vasilhas, lavar roupas, “encher os Igba”, água para Osalá. Não foi a toa que recebemos uma nascente e de Ifá o nome “Casa de força das águas de Osalá”. Essa é a nossa casa, que nem sempre foi assim; acende-se um interruptor, abre-se uma torneira.
Ainda rezamos para luz, ela sempre será sagrada. Ainda carregamos água na lata para o pai Osalá. E sabem, ainda temos uma rainha que só aparece à luz de velas para nos abençoar. Nem sempre foi assim, mas, também, nunca mudou.
Publicado em Alafiona - Nº9
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