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27 maio 2010

Aiyebaye – Tempo passado

Por Celeste d´ Alcântara Arruda - Iya Osairanle



À luz de velas e banhos de balde.


Sempre que acendemos a luz no candomblé saudamos este momento com uma oração, uma canção. Seja essa luz emitida por uma vela, um bibiano, um lampião, um fifó ou mesmo uma lâmpada. Nessa casa do pai Osalá (Oxalá) e de Omolu, não nos foi dada a dádiva de, em pleno século XX, termos reconstruído o Terreiro São Bento com luz elétrica, paredes de tijolos ou água encanada.

Quando adquirimos as terras que hoje habitamos, era tudo mata, tudo barro. Tivemos que erguer casas de taipa e construir com o que a natureza nos fornecia. E a natureza nos deu também a força, a coragem, a resignação e a fé necessárias para erguemos cada casa de Orisa. Foram muitas noites e dias de trabalho árduo. Sangò (Xangô) nos ofereceu uma pedreira, Osún (Oxum), a água pura e doce que move todos os nossos preceitos. Omolu, o barro para nossa casa e o plantio de nossa comida. Ossain e Odé, mesmo com a dor das árvores que tombaram sob nossas mãos, não nos negaram as generosas folhas e frutas nativas que por dias e dias nos alimentaram, nos cobriram e nos curaram. Os pássaros que hoje se abrigam ao nosso redor oferecendo-nos a sua beleza acompanhada de incomparável sinfonia a cada amanhecer, certamente sentiram falta dos abrigos de seus ninhos com a nossa proximidade e as derrubadas, assim como tantos outros animais se assustaram com nossa presença, certamente imaginavam: “... o homem vem aí...”.

Durante anos esperávamos e perseverávamos pela luz elétrica. Quem viveu aqueles dias, lembra da agonia do entardecer que ao chegar trazia um bocadinho de medo do desconhecido escuro da mata. E na fé de que tudo que temos pertence ao Orisá, esperávamos pela canção para acender a luz, que mesmo precariamente nos guiava até a casa de Osalá para então começarmos as rezas, para oferecermos as comidas sagradas, servir, cantar, tocar e dançar para o Orisá. Poucos tinham mesmo coragem de enfrentar a escuridão material e, tateando no barro, caminhar até a roça, com sacolas de roupas, bolo, lembranças, bichos, axés e um coração com fé. De que tudo um dia seria melhor, de que todo sacrifício seria transformado na paz que precisamos para permanecer, a paz de Osalá.

Eu me lembro do ônibus deixando-nos no início da estrada de barro, o motorista dizia: “... a senhora vai entrar ai mesmo dona? é perigoso, está escuro!” Parecia sem fim, o ônibus se distanciava de nós e desaparecia na escuridão. O seco engolido num pedido de coragem para entrar na mata e chegar no São Bento. Santo Lugar! Nunca fomos agredidos, molestados, maltratados ou esquecidos ali, no mato. Esu nunca permitiu, em meio à escuridão, errarmos o caminho. Sempre seguro o caminho que nos leva ao São Bento.

O raiar do dia nos trazia outra canção: a alvorada dos pássaros. Latas e baldes na mão, uma procissão caminhava até a nascente para buscar água. Água para banhar-se, para preparar os banhos de Àsé, cozinhar, encher vasilhas, lavar roupas, “encher os Igba”, água para Osalá. Não foi a toa que recebemos uma nascente e de Ifá o nome “Casa de força das águas de Osalá”. Essa é a nossa casa, que nem sempre foi assim; acende-se um interruptor, abre-se uma torneira.

Ainda rezamos para luz, ela sempre será sagrada. Ainda carregamos água na lata para o pai Osalá. E sabem, ainda temos uma rainha que só aparece à luz de velas para nos abençoar. Nem sempre foi assim, mas, também, nunca mudou.


Publicado em Alafiona - Nº9

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